Aceitar a delação premiada como prova legaliza a tortura cometida por juízes
A delação premiada tem sido colocada como grande trunfo contra a corrupção e crime organizado. Fala-se que sem esse instrumento processual não seria possível punir os envolvidos em esquemas de corrupção e de lavagem de dinheiro, sendo que nos noticiários se tem dado grande destaque às delações em que políticos e empresários são citados.
Esquece-se, porém, de verificar se o instituto está sendo utilizado de modo correto, se não está afrontando outros dispositivos da legislação vigente ou se está sendo utilizado de acordo com os direitos e garantias conquistados a muito custo ao longo da história. Aqui faremos alguns questionamentos sobre o modo como tal instituto tem sido utilizado.
Primeiramente, deve-se notar que nem sempre sabemos se o conteúdo da delação corresponde à realidade. Tal instrumento pode ser utilizado para obter depoimentos contra pessoas determinadas, sem que seja possível fazer a análise da sua veracidade. Acreditar que todos os envolvidos nas delações são isentos é tão absurdo quanto crer que um criminoso não utilizará de todos os meios possíveis para não ser punido.
Sobre isso exponho apenas um caso que ocorreu recentemente. Fernando Moura acusa inicialmente José Dirceu de ter conhecimento da corrupção que ocorreria na Petrobrás e é investigado na Operação Lava Jato. Quando presta depoimento, nega que saiba que José Dirceu soubesse da corrupção que ocorria na Petrobrás. Como os promotores ameaçam rescindir o acordo de delação, Fernando Moura, com medo de ser condenado e preso, volta atrás e fala que José Dirceu sabia do ocorrido, tendo o Ministério Público mantido o acordo. Em que versão devemos acreditar? Fernando Moura estava tentando ajudar José Dirceu ou apenas tentava não ser condenado mentindo ao alegar que José Dirceu sabia do esquema?
E esse não é só o problema.
A delação está sendo utilizada de forma indiscriminada, mesmo que os delatores, em geral, possuam grande envolvimento com os casos investigados. São pessoas que, evidentemente, cometeram crimes e buscam se subtrair das penas. Será que devem gozar da credibilidade necessária? Essas não podem ser pessoas que fazem de tudo para não serem punidas, inclusive, mentindo? Essa mentira poderá tanto beneficiar eventuais comparsas quanto ir ao encontro dos interesses de um promotor ou juiz sedentos por prestígio, dizendo, os delatores, o que eles querem ouvir. Sabemos que câmeras e microfones são sedutores e que diversas pessoas que desejam ser vistas como guardiãs da ordem e da ética. Isso sem falar em motivos políticos. Até que ponto a delação se dá para demonstrar fatos e até que ponto ela se dá para punir determinadas pessoas?
A voluntariedade também deve ser questionada ao analisarmos o modo como algumas delações têm sido obtidas. A lei 12.850/2013 diz que a delação deve ser voluntária. Segundo o Dicionário Michaelis, a ação voluntária é aquela feita espontaneamente, sem coação ou constrangimento, por vontade própria. Ou seja, pelo que a lei indica, o delator deve buscar a polícia ou o Ministério Público para fazer a delação, deve resolver-se por si próprio, não pode ser coagido ou constrangido por nenhum meio.
É público e notório que, em algumas das delações, os delatores encontravam-se presos preventivamente e logo após a delação conseguiram sua liberdade. É possível dizer, nesse caso, que a delação foi voluntária?
Ao verificar o grande número de delatores que têm a prisão preventiva revogada após a delação, achei melhor consultar o Capítulo referente à medidas cautelares no CPP, afinal acreditava estar desatualizado, uma vez que não me recordava que a prisão preventiva poderia ser utilizada com o fim de se obter a confissão ou a delação de pessoas que participaram de um crime. Para minha surpresa, o conteúdo do art. 312 do Código de Processo Penal continua inalterado, sendo que cidadãos só podem ser presos se houver risco à ordem pública e econômica, para a instrução criminal ou para a aplicação da lei penal.
Fica evidente que a prisão preventiva está sendo utilizada de forma indevida para obter delações. Vamos ser claros e não ofendamos a inteligência das pessoas. Se a prisão preventiva era necessária antes da delação, o que mudou para ela deixar de ser necessária? Acho muito difícil a situação de uma pessoa ser modificada pelo simples fato de que foi feito um acordo de delação premiada. Das duas uma: ou a revogação da prisão preventiva se deu de forma indevida, ou a decretação da prisão preventiva é ilegal, pois foge dos requisitos legais para sua aplicação. Em outras palavras, há claro desvio de função na aplicação da prisão preventiva.
Mas não paramos por aí. Não é porque uma ação se reveste de aparência de legalidade que ela é lícita. Lembremos dos crimes contra a humanidade cometidos na Alemanha nazista. Os líderes nazistas apenas cumpriam a lei, mas alguém questiona que aquelas leis afrontavam a dignidade humana?
Aqui serei menos complacente do que o Ministro da Justiça, Eugênio Aragão, que declarou que há extorsão nos métodos utilizados para se obter as delações premiadas. Ao meu ver há evidente tortura de alguns dos delatores. Vejamos o que a lei de tortura diz:
“Art. 1º Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;”
O que é feito em diversos casos em que ocorre a delação premiada é o constrangimento dos investigados e réus, que são colocados em prisões, submetidos a sofrimento mental e físico, afinal nos presídios são colocados em condições sub-humanas, com o evidente fim de que haja a aderência ao acordo de delação premiada (“obter informação, declaração ou confissão da vítima”).
Está claro que, ao submeter o futuro delator a uma prisão processual, em diversos casos não se busca como objetivo aqueles elencados no art. 312 do CPP, mas sim a obtenção da delação. Se coloca a pessoa numa situação de sofrimento para que, com o intuito de se ver livre, faça a declaração que o Ministério Público e o Juiz desejam obter. Essa declaração, longe de ser voluntária – como a lei determina – é forçada mediante artifício ardil, que a lei tipifica como tortura.
Repito: não é porque se dá aparência de legalidade que um ato é necessariamente legal. Não é porque se utilizam argumentos fantasiosos, como a necessidade de se garantir a ordem econômica, tendo em vista as vultosas quantias que o investigado possui, ou que o crime apurado é de grande gravidade e acaba por assolar a estrutura do Estado e é capaz de corromper diversos agentes públicos, que a decretação de prisão passa a ser legal. O que há, aqui, é a utilização de argumentos forjados, com o fim de esconder a ilegalidade da prisão.
Se a lei for aplicada, essas delações não devem ser aceitas, pois são nulas, vez que foram obtidas sem qualquer voluntariedade. Mesmo que o delator tenha procurado os agentes públicos depois de preso, é evidente que o fez com uma “ajuda” do Poder Público, que o prendeu, a fim de obter uma declaração que incriminasse outras pessoas e fornecesse provas para que outros pudessem ser processados.
Como pode ser visto no dia-a-dia, são diversas as delações que foram obtidas a partir de prisões, sendo inúmeras as prisões preventivas revogadas após a aceitação do acordo de delação premiada. Num Estado Democrático de Direito isso é inaceitável, pois legaliza a tortura cometidas por juízes, e contraria a lei que institui a delação premiada, uma vez que esta coloca como requisito a voluntariedade do delator.
Tenho minhas dúvidas se o STF, com sua atual composição de Ministros, tenha a coragem de se posicionar contra a opinião pública e a pressão midiática para, num surto de legalidade e responsabilidade, impedir arbítrios de torturadores travestidos de agentes estatais, bem como declarar as delações nulas e determinar a apuração e consequente punição dos agentes públicos que solicitaram a prisão sabendo de sua ilegalidade. Infelizmente, alguns dos Ministros estão mais preocupados com as manchetes dos jornais do que com a Constituição, o que torna o Estado brasileiro terreno fértil para que agentes públicos cometam todo tipo de ilegalidades.
André Lozano Andrade é advogado criminalista do RLMC Advogados e especializado em Direito e processo penal pelo Mackenzie.